Gostaria de entender Gênesis
6:6 que diz que Deus se arrependeu, à luz de outros versos das Escrituras que
dizem que ele não pode se arrepender. Deus é como o homem, para que se arrependa?
Sobre
qualquer questionamento teológico, temos que entender em primeiro lugar, que
todo princípio bíblico tem que ser estudado com base no contexto geral das
Escrituras, respeitando a época, as circunstâncias e para quem foi escrito
originalmente.
Por
isto, quando estudamos as Escrituras precisamos ter em mente alguns fatores. O
primeiro deles diz respeito ao ambiente cultural, a época e os costumes,
daquele profeta ou apóstolo que escreveu o livro. Em segundo temos que analisar
esta passagem com o contexto geral da Bíblia.
O leitor da Bíblia ao chegar a passagens como Gênesis 6:6;
I Samuel 15:11 e Jonas 3:10 que declaram que Deus se arrependeu e
posteriormente confrontá-las com Números 23:19; I Samuel 15:29; Salmo 110:4 e
Hebreus 6:17, que afirmam ser impossível que Deus se arrependa, pensará que
existe grande contradição na Palavra de Deus quanto ao arrependimento divino.
Nesse
estudo temos a finalidade de dissipar dúvidas sobra a veracidade da Palavra
inspirada contribuindo para que declarações aparentemente conflitantes sejam
esclarecidas. Para alcançarmos este objetivo é necessário pesquisarmos
diretamente nas línguas originais em que o Velho e o Novo Testamento foram
escritos, porque estas línguas nos fornecem elementos convincentes.
O QUE É ARREPENDIMENTO? De acordo com o
Dicionário da Língua Portuguesa de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira,
"arrependimento é sinônimo de compunção, contrição. Insatisfação causada
por violação de lei ou de conduta moral e que resulta na livre aceitação do
castigo e na disposição de evitar futuras violações".
Como
um termo teológico é o ato de abandonar o pecado, aceitando a graciosa dádiva
da salvação de Deus, entrando para um relacionamento pessoal e amigo com Ele.
Arrependimento evangélico tem sido definido como mudança de pensamento, que
leva a novo modo de agir. Em outras palavras é a revolta consciente e
definitiva do homem contra o próprio pecado.
Arrependimento
significa tornar-se outra pessoa, "se não vos converterdes e não vos
tornardes como crianças, de modo algum entrareis no reino dos Céus".
Mateus 18:3.
Russel
Norman Champlin em “O Novo Testamento Interpretado Versículo por Versículo”,
Vol III, p. 68, assim define:
1)
"É um ato divino que transforma o homem, mas que depende da reação
positiva do homem, uma vez inspirada pela fé".
2) "É o começo do processo de santificação".
O
Novo Dicionário da Bíblia, I Vol. p. 141 o define desta maneira: "Consiste
de uma revolução naquilo que é mais determinativo na personalidade humana,
sendo o reflexo, na consciência, da radical mudança operada pelo Espírito Santo
por ocasião da regeneração".
ARREPENDIMENTO NO VELHO TESTAMENTO: No
hebraico são encontrados dois vocábulos para expressar a idéia de
arrependimento.
I.
Naham. É o arrependimento de Deus e corresponde ao grego Metamélomai.
As seguintes passagens bíblicas confirmam a sua existência. Gênesis 6:6 e 7;
Êxodo 32:14; Jonas 3:9 e 10.
Deus
é imutável em Seu Ser, na Sua perfeição e em Seus
propósitos. O arrependimento divino não traz mudança do Seu Ser, do Seu
caráter, mas apenas mudança em Sua
maneira de tratar com os homens. O arrependimento de Deus é uma referência
à alteração que se realiza na Sua relação para com o homem. O exemplo dos
ninivitas nos ajuda a compreender o arrependimento de Deus. A cidade não foi
destruída porque o povo se arrependeu de suas más obras. Deus mudou o seu
tratamento devido à mudança operada no povo. O arrependimento de Deus (naham)
foi uma conseqüência do arrependimento do povo (shubh).
Na International Standard Bible
Encyclopaedia, vol. IV, p. 2.558 se encontra a seguinte explicação:
"A
palavra hebraica naham é um termo onomatopaico, que significa dificuldade em
respirar, como gemer, suspirar, e também lamentar, magoar-se, compadecer-se e,
quando a emoção é produzida pelo desejo do bem dos outros, chega a significar
compaixão e simpatia; quando, porém, se refere ao próprio caráter e atos,
significa lastimar, arrepender-se. A fim de adaptar a linguagem à nossa
compreensão, Deus é representado como alguém que se arrepende, quando retarda
as penalidades que tem de aplicar ou quando o mal a sobrevir é desviado por ter
havido uma reforma genuína (Gênesis 6:6; Jonas 3:10)".
II.
Shubh - arrependimento do homem.
Este
vocábulo hebraico corresponde ao grego metanoéo. Esta palavra significa
girar, voltar ou retornar e é aplicada quando a pessoa deixa o pecado e se
volta para Deus de todo o coração. Se o pecado etimologicamente significa
falhar em atingir o alvo, desviar-se do caminho certo; arrepender-se é retornar
ao caminho correto ou total retorno da pessoa a Deus.
ARREPENDIMENTO NO NOVO TESTAMENTO: Assim
como há no hebraico duas palavras, uma para expressar o arrependimento divino e
outra o humano, existem também em grego duas diferentes palavras para
transmitir estes dois tipos de arrependimento.
I.
O verbo usado em grego para o arrependimento de Deus é metamélomai, pode
ser traduzido por: pesar, sentir tristeza, remorso, mudança de sentimento. Ter
cuidado ou preocupação por alguém ou alguma coisa. Etimologicamente significa
mudar uma preocupação por outra.
Possuindo
Deus caráter e atributos imutáveis Ele é perfeito, logo não pode mudar nem para
melhor nem para pior. No entanto a imutabilidade divina não consiste em agir
sempre da mesma maneira. Há casos e circunstâncias que podem ser alterados.
A
Teologia Sistemática de Strong, p. 124 nos esclarece sobre a imutabilidade
de Deus: "Deus, embora imutável, não é imóvel. Se Ele, coerentemente,
segue um curso de ação segundo a justiça, Sua atitude precisa ser adaptada a
toda mudança moral nos homens”.
A
imutável santidade de Deus requer que Ele trate os ímpios diferentemente dos
justos. Quando os justos se tornam ímpios, seu tratamento a respeito destes
deve mudar. O sol não é volúvel ou parcial porque derrete a cera, enquanto
endurece o barro; a mudança não está no sol, mas nos objetos sobre os quais
brilha. A mudança no tratamento de Deus para com os homens é descrita
antropomorficamente como se ocorressem mudanças no próprio Deus".
II.
metanoéo é o verbo usado em grego para o arrependimento do homem.
Dicionários e comentários nos informam que significa:
a)
uma mudança de mente, de pensamento.
b)
Literalmente significa pensar diferentemente.
c)
Teologicamente a palavra inclui não somente mudança da mente, mas uma nova
direção da vontade, próposito e atitudes.
O
verbo metanóeo é usado em o Novo Testamento 32 vezes. O arrependimento inclui
três aspectos:
1)
O aspecto intelectual, ou seja, o reconhecimento, pelo homem, do erro de sua
vida, sua culpa diante de Deus, sua incapacidade para, em suas próprias forças
agradar a Deus. Sendo o homem um ser intelectual, Deus somente se agrada em ser
adorado por meio de um processo racional.
2)
O aspecto emocional - tristeza pelo seu pecado como uma ofensa contra um Deus
santo e justo. Os sentimentos não são equivalentes ao arrependimento, mas podem
conduzir a um verdadeiro arrependimento, porque o verdadeiro arrependimento não
pode provir de um coração frio ou indiferente.
3)
O aspecto da vontade ou volitivo - mudança de propósito, resolução íntima
contra o pecado e disposição para buscar de Deus o perdão, purificação e poder.
Este é o mais importante dos elementos, pois Deus pode apelar à pessoa para se
converter, chamá-la ao arrependimento, mas como Deus dotou o homem com o livre
arbítrio, somente este pode ou não aceitar o perdão divino; somente o próprio
homem pode escolher arrepender-se ou não.
Apesar
das ponderações anteriores, o arrependimento, no mais profundo sentido, está
além das forças ou do poder humano. Ellen G. White declara em Testemunhos
Seletos, Vol. II, p. 94: "O arrependimento, bem como o perdão, são dons de
Deus por meio de Cristo". É importante compreender esta verdade
fundamental. Não podemos primeiro arrepender-nos para depois ir a Cristo.
Devemos ir a ele como estamos e ele irá transformar a nossa vida.
Paulo
em Romanos 2:4 nos asseverou com muita objetividade que é a bondade de Deus que
nos conduz ao arrependimento. O arrependimento é um passo decisivo na vida do
cristão, desde que a Bíblia o apresenta como uma das condições para a salvação
(Mat. 3: 1 e 2.)
Naqueles
dias apareceu João Batista, pregando no deserto da Judéia, e dizia:
Arrependei-vos, porque está próximo o reino dos céus ( Mat. 4:17). Daí por
diante passou Jesus a pregar e a dizer: Arrependei-vos, porque está próximo o
reino dos céus.... “Se, porém, não vos arrependerdes, todos igualmente
perecereis”. Luc. 13:3
"O arrependimento de Deus não é como o
do homem. Aquele que é a Força de Israel não mente nem se arrepende; porquanto
não é um homem para que se arrependa, (I Samuel 15:29). O arrependimento do
homem implica uma mudança de intuitos. O arrependimento de Deus implica uma
mudança de circunstâncias e relações. O homem pode mudar sua relação para com
Deus, conformando-se com as condições sob as quais pode ser levado ao favor
divino; ou pela sua própria ação, colocar-se fora da condição favorável, mas o
Senhor é o mesmo, ontem, hoje e eternamente,
Heb. 13:8". Ellen G. White, Patriarcas e Profetas, p. 700.
DOIS EXEMPLOS DISTINTOS DE ARREPENDIMENTO
ENCONTRADOS NA BÍBLIA:
1)
O arrependimento de Pedro: Após a
negação do Mestre, quando o olhar compassivo e perdoador de Cristo lhe penetrou
na alma, ele se rendeu à influência transformadora do amor. Lucas 22:62 afirma
que ele chorou amargamente. Esta é a tristeza que opera o arrependimento que
conduz à salvação - II Cor. 7: 9-10. O arrepender-se de Pedro foi metanoéo que
modificou toda a sua vida. Ele estava triste por causa do seu pecado. Sua
trágica queda por ocasião do julgamento de Cristo, seguida de seu
arrependimento e subseqüente reabilitação, aparece como sendo o ponto de
conversão de sua vida e caráter. Daí por diante, e com uma única exceção (Gál.
2: 11-13), ele nos é apresentado como nobre apóstolo, com dignidade, coragem,
prudência e firmeza de propósito.
2)
O arrependimento de Judas: Em Mateus 27:3, se encontra o verbo metamélomai, que
em algumas traduções aparece traduzido por arrepender-se, mas o seu
arrependimento foi somente no sentido de tristeza, ou remorso pelo seu pecado
por causa das suas conseqüências, e não pelo pecado em si, no sentido de
mudança de vida, de abandono do pecado, e por ter magoado seu Mestre. Essa
tristeza segundo o mundo é a que opera a morte (II Cor. 7:10). Judas não sentiu
profundo pesar por haver traído a Cristo, mas tristeza por perceber que seus
planos falharam. O verbo metamélomai foi usado porque o seu arrependimento foi
apenas mera tristeza, desespero, sem nenhuma mudança da mente (metanóeo).
Cristo sabia que o traidor não se arrependera verdadeiramente. O Desejado de
Todas as nações, p. 490 confirma esta declaração:
"Até
dar esse passo Judas não passara os limites da possibilidade de arrependimento.
Mas quando saiu da presença de Seu Senhor e de seus condiscípulos, fora tomada
a decisão final. Ultrapassara os termos".
CONCLUSÃO:
A
idéia principal na afirmação de que Deus se arrependeu, nada tem a ver com
falhas e pecados como acontece com o homem, mas apenas a sua mágoa com o mau
procedimento humano e o seu desejo de sustar o curso do mal. Deveríamos sempre
ser gratos a Deus, porque no Seu infinito amor, Ele se entristece com o nosso
pecado e muda o Seu tratamento quando nos arrependemos de nossas obras más.
Deus é imutável, mas a mutabilidade humana faz com que Ele mude o Seu trato
para conosco.