Gostaria de obter esclarecimento sobre um versículo bíblico e a aplicação que se faz do mesmo. Falo de Zacarias 13 verso 6: “Se alguém lhe disser: Que feridas são estas nas tuas mãos? Dirá ele: São feridas com que fui ferido em casa dos meus amigos”. Sempre aplicamos essa passagem a Jesus, inclusive o quarteto Arautos do Rei e a Meditação Matinal, Uma Palavra Amiga. Mas estudando o contexto não consigo ver esta passagem como sendo uma profecia messiânica. Estas aplicações seriam interpretações errôneas da profecia?
Prezada irmã em Cristo, recebi com alegria o seu email. Vejo que você é uma estudiosa da Palavra de Deus, como os cristãos de Beréia (At 17:11). Sua carta demonstra uma dedicação ao pesquisar e refletir sobre os estudos inspirados. Imagino que o Senhor tem você como um dos “Bem-aventurados... que lêem e... que ouvem as palavras da profecia e guardam as coisas nela escritas, pois o tempo está próximo” (Ap. 1:3).
Em sua análise sobre Zacarias 13:6 você segue o início de uma seqüência correta de passos a serem observados para a interpretação de uma passagem bíblica, e sua posterior aplicação. Você estuda o contexto. Continuarei aqui este estudo. Usarei alguns termos teológicos, mas antes procurarei defini-los. Para maior esclarecimento aconselho que busque a literatura mencionada nas notas de rodapé.
Realmente não temos autoridade de colocar na boca do profeta palavras que ele não disse. Os cuidados para não cairmos no erro de uma falsa interpretação são ensinados pela “ciência e arte de apurar o sentido do texto bíblico”, a hermenêutica.
Seguindo as regras de interpretação bíblica, considerando os abismos cronológico, geográfico, cultural, lingüístico, literário e espiritual que existem entre nós e o profeta autor, podemos fazer uma exegese (verificação do sentido do texto bíblico dentro de seus contextos histórico e literário) segura. Isto é o que os teólogos fazem (ou pelo menos deveriam fazer - honestamente) ao estudarem a Bíblia para descobrir suas verdades, aplicá-las e transmiti-las em exposição (pregação ou ensino) às pessoas em geral. Uns com uma maior compreensão, outros de forma mais limitada e ainda outros até mesmo adulterando o sentido profético (consciente ou inconscientemente). A esta última situação chamaríamos eisegese, i. e., uma falsa pregação. O que jamais deveríamos fazer.
Interpretação
Uma exegese honesta às regras da hermenêutica chega à conclusão de que, em primeira estância, Zacarias realmente não estava falando do Messias que ele esperava. “A pergunta acerca destas feridas parece estar dirigida, segundo o contexto, ao falso profeta convertido (Zc 13:5-6)”, pelas marcas que havia recebido em honra aos ídolos. Os primeiros argumentos de que não seria possível o profeta estar referindo-se a Jesus seriam: a) Cristo não foi ferido entre os braços; b) não foi ferido em casa, mas na cruz; c) não foi ferido por amigos, mas por inimigos; d) não foi interrogado após a ressurreição; e) não poderia dizer que não era profeta; f) não diria que era lavrador; g) não diria que era escravo.
Aplicação
Aplicar é descobrir que lição espiritual direta o texto tem para o tempo presente. Zc 16:6 nos ensina uma lição. Existem muitas pessoas que hoje estão convertidas mas carregam em si (no caráter, no comportamento, no corpo, etc) as marcas do seu passado, adquiridas pela indução de “amigos”, quando eram escravas do pecado.
Aplicação Secundária
Ao aplicarmos os ensinamentos bíblicos para a nossa realidade, reflexão e crescimento, podemos usar de um recurso chamado “aplicação secundária”. Na aplicação secundária não afirmamos o mesmo que o profeta queria dizer, ao mesmo tempo que também não ensinamos que ele queria dizer o que estamos dizendo, mas que estamos apenas tomando emprestadas as suas palavras para uma nova aplicação. Isto é usar o recurso (palavras do profeta) de forma honesta (citando o profeta; não mentindo sobre o que o profeta não queria dizer) para um fim benéfico (aplicação). Neste caso, ensinaríamos assim: “Zacarias, ao escrever estas palavras (13:6) estava se referindo ao profeta pagão convertido de seus dias, mas podemos ver aqui uma demonstração do que aconteceu e acontece com Jesus, que por tomar sobre si os nossos pecados, mesmo após estar glorificado ainda carrega suas marcas...” Isto não é eisegese, é aplicação secundária.
Apesar de ser uma comparação metafórica com a intenção original do texto, nem sempre a aplicação secundária cita qual era esta intenção primária. Mas também não apresenta uma interpretação contrária, ou seja, não expõe o profeta de modo violado. Um exemplo disto é a música de Jader Santos, “Feridas”. Faz uso das palavras de Zacarias para aplicar a um possível diálogo que teremos com Jesus, no céu. Mas o compositor não diz que era isto que Zacarias estava querendo dizer em seu livro. Torcer o texto bíblico, neste caso, seria dizer: “Zacarias, em seu livro, no capítulo treze verso seis, escreveu sobre Jesus”.
A aplicação secundária de Zc 13:6 para o Messias é praticada entre os estudantes da bíblia contemporâneos.
“Alguns intérpretes têm aplicado este texto a Cristo, como uma figura do flagelamento e das feridas que lhe infligiram os que deveriam ter sido seus amigos (Mt 27: 26; Mc 14: 65; 15: 15; Lc 22: 63; Jo 19: 1, 17- 18). Mas isto tem que se fazer mediante uma ‘aplicação secundaria’, ou fazendo uma separação depois de Zc 13:5 e relacionando o verso 6 com o verso 7”,
que contêm clara profecia acerca de Cristo (Mt 26: 31). Usando a aplicação secundária este ferido é referido como sendo Jesus.
Esta aplicação é coerente nos aspectos de que: a) Cristo foi ferido nas mãos e entre as mãos, tendo seu lado traspassado (Sl 22:16; Zc 12:10; Jo 19:19, 37; 20:25-27); b) Ele foi ferido em seu lar judaico (Sl 2:2; Is 53:1; Lc 4:29; 23:18; Jo 1:11); c) Traído por um amigo (Sl 41:9; Mt 26:14:16); d) Após a ressurreição teve sua identidade questionada e a prova foram suas feridas (Jo 20:24-26); e) Ninguém o ungiu como profeta, i.e., não tinha um título de profeta oficialmente reconhecido (Mt 21:23-27); f) Ele é um lavrador da lavoura do Senhor (Mt 13:37) e; g) o servo (que também pode ser traduzido por “escravo”) sofredor (Is 49:1-7; 50; 52:13 a 53:12; At 3:13-26; 4:27; Fp 2:7).
Entretanto, alguns teólogos preferem não fazer esta aplicação secundária, em suas listas de profecias messiânicas.
Reinterpretação
“Em nosso estudo da Bíblia, podemos encontrar algum texto que foi citado posteriormente por outro escritor inspirado, que o retirou de seu contexto original e lhe deu um novo significado. ...[o] texto foi reinterpretado”. Isto é chamado de dupla aplicação.
Uma reinterpretação do texto dando-lhe um significado maior e/ou mais completo é chamada de sensus plenior.
Geralmente, no caso de reinterpretação, o primeiro profeta desconhecia o segundo significado. Isto não é freqüente nos textos bíblicos, mas encontramos alguns exemplos. Em Isaías 64 o profeta está fazendo sua última oração em intercessão pelo Israel antigo e cita que o que Deus faria por ele. Até os dias de Jesus, a interpretação de Is 64:4 seria neste contexto. Mas Paulo reinterpreta aquelas palavras num sentido do contexto da Nova Terra. Isto é sensus plenior. Um outro caso de reinterpretação é visto em Mateus. Ao referir-se à liberação de Israel da escravidão, Oséias disse que Deus chamou a seu filho (Israel) do Egito (Os 11:1), mas Mateus viu nas palavras de Oséias uma profecia para Cristo (Mt 2:15). Foi revelada uma dupla aplicação do texto.
Mais exemplos:
Isaías descreveu em forma vívida o estado espiritual de Israel em seus dias (Is 6: 9, 10; 29: 13), mas Cristo declarou que estas palavras proféticas descreviam sua geração (Mt 13: 14, 15; 15: 7-9), dizendo: ‘Se cumpre neles a profecia de Isaías’.
A exegese feita por Paulo dos incidentes históricos e das declarações proféticas registradas no A.T. se ajusta ao molde traçado por Cristo e os evangelistas. Na verdade, Paulo interpreta muitas passagens de uma maneira que nem sempre se faz evidente se usar-se apenas o A.T. (ver At 13: 32, 33; 2 Co 8: 15; Gl 3: 13, 16; 4: 22-31; 1 Tm 5: 17, 18; Hb 1: 5-8; 10: 5).
É natural que surja a pergunta: Como podemos saber quando pode considerar-se que certo incidente histórico tem seu equivalente em um acontecimento posterior, ou quando una declaração profética tem dupla aplicação? A resposta é esta: quando um autor inspirado faz tal aplicação. Ir além do que está claramente exposto pela Inspiração é entrar no pântano da opinião pessoal. Se não nos prendermos a esta delimitação corremos um sério risco de vãs interpretações (Cl 2:8).
Posto que cremos que tanto os autores do N.T. como os do A.T. foram plenamente inspirados, para ser conseqüentes, devemos crer que certas profecias têm dupla aplicação.
Ellen G. White, com autoridade de inspiração, ao tratar um texto bíblico por vezes ela o faz com fidelidade ao seu primeiro sentido e outras vezes faz dele aplicação. Mas algumas vezes ela reinterpreta o texto bíblico num sentido de sensus plenior ou mesmo de dupla aplicação. Podemos ver isto no exemplo do uso que ela faz da citação de Zc 13:6:
Mesmo a maneira de Sua morte foi prefigurada. Como a serpente de bronze foi levantada no deserto, assim devia ser levantado o Redentor por vir, ‘para que todo aquele que nEle crê não pereça, mas tenha a vida eterna’. (Jo 3:16). ‘E se alguém Lhe disser: Que feridas são essas nas Tuas mãos? Dirá Ele: São as feridas com que fui ferido em casa dos Meus amigos’ (Zc 13:6),
pois Sua mais elevada honra foi e é ter estas marcas
Comentando sobre a eternidade ela usa este verso numa aplicação dizendo que
Jesus apresentará Suas mãos com os sinais de Sua crucifixão. Os sinais desta crueldade sempre Ele os levará. Cada vestígio dos cravos contará a história da maravilhosa redenção do homem e o valioso preço por que foi comprada. Os mesmos homens que arremeteram a lança no lado do Senhor da vida, verão o sinal da lança, e lamentarão com profunda angústia a parte que desempenharam em desfigurar o Seu corpo.
Baseados na crença de que o dom de E. White tem autoridade profética, cremos que suas reinterpretações sobre qualquer texto sejam verdadeiras, mas podem ainda não abranger ali toda a verdade inserida, não sendo, neste caso, a palavra final sobre esta passagem. Ela própria declarou que seus estudos deveriam ser “uma luz menor” com o objetivo de “guiar homens e mulheres à luz maior”, a Palavra de Deus.
Portanto, podemos dizer que a aplicação de Zc 13:6 para referir-se a Jesus tem amparos tanto exegético, num caráter de aplicação secundária, quanto inspirado, baseados no uso que Ellen White faz do texto.
Amiga, escolha fontes salutares para beber. Continue com sua devoção, lendo diariamente a Bíblia e testemunhando para outros sobre o que Jesus fez por você e por eles.
Que o Deus dos Céus continue abençoando muito a você.
Um abraço do seu amigo e irmão em Cristo,
Pergunta Que Será Respondida Amanhã:
Podemos identificar a mulher adúltera de João 8: 1-11 como sendo Maria Madalena?